quinta-feira, 14 de abril de 2011


O MITO FUNDADOR

Marilena Chauí


            (...) “Certa vez, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty comparou o aparecimento de novas idéias filosóficas – no caso, a idéia de subjetividade no pensamento moderno – e a descoberta da América. A comparação o levou a dizer que uma nova idéia não pode ser descoberta, pois ela não estava ali à espera de alguém que a achasse. (...) uma idéia, escreveu ele, não estava a nossa espera como a América estava à espera de Colombo.” (P. 57, P. 3).
            “A América não estava aqui à espera de Colombo, assim como o Brasil não estava aqui à espera de Cabral. (...) São invenções históricas e construções culturais. (...) é uma criação dos conquistadores europeus.” (P. 57, P. 5).

            A sagração da natureza

            (...) “do ponto de vista simbólico, as grandes viagens são vistas como um alargamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do invisível para chegar a regiões que a tradição dizia impossíveis (como a dos antigos) ou mortais (como a zona tórrida).” (P. 58, P. 5).
            “Os escritos medievais consagram um mito poderoso, as chamadas ilhas afortunadas ou ilhas bem aventuradas, lugar abençoado, onde reinam primavera eterna e juventude eterna, e onde homens e animais convivem em paz. Essas ilhas, de acordo com as tradições fenícias e irlandesas, encontram-se a oeste do mundo conhecido. Os fenícios as designaram com o nome Braaz e os monges irlandeses as chamaram de Hy Brazil.” (P.59, P. 1).
            (...) “A bandeira brasileira é quadricolor e não exprime o político, não narra a história do país. É um símbolo da Natureza. É o Brasil - jardim, o Brasil - paraíso.” (P.62, P.3)
            “Como justificar a escravidão no paraíso?” (P. 63, P. 6).
            (...) “A teoria do direito natural subjetivo, por sua vez, afirma que o homem, por ser dotado de razão e vontade, possui naturalmente o sentimento do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto, e que tal sentimento é o direito natural, fundamento da sociabilidade natural, pois o homem é, por Natureza, um ser social.” (p. 63, p. 8).
            “Assim, em conformidade com as teorias do direito natural objetivo e subjetivo, a subordinação e o cativeiro dos índios serão considerados obras espontâneas da Natureza. (...) os índios não podem ser tidos como sujeitos de direito e, como tais são escravos naturais.” (P. 64, P.2).
            (...) “A inferioridade objetiva dos nativos na hierarquia natural dos seres justifica que, subjetivamente, escolham a servidão voluntária e sejam legal e legitimamente escravos naturais.” (P.65, P. 3).
            “Ao que tudo indica, os índios decidiram usar a livre faculdade da vontade e recusar a servidão voluntária.” (P. 65, P. 6).
            (...) “Dada a “afeição natural” dos negros para a lavoura, era também natural que os vencidos de guerra fossem escravos naturais para o trabalho da terra.” (P. 65, P. 7).
            “A escravização dos índios e dos negros nos ensina que Deus e o Diabo disputam a Terra do Sol. Não poderia ser diferente, pois a serpente habitava o Paraíso.” (P. 66, P. 1).
            “Com isso, somos levados a outro efeito da imagem do Brasil – Natureza. A disputa cósmica entre Deus e o Diabo aparece, desde o início da colonização, sem se referir às divisões sociais, mas como divisão da e na própria Natureza: o Mundo Novo está dilacerado entre o litoral e sertão.” (P. 66, P. 2).

         A sagração da história
           
            “Assim, o segundo elemento na produção do mito fundador vai lançar-nos na história, depois que o primeiro nos havia tirado dela. Trata-se, porém, da história teológica ou providencialista, isto é, da história como realização do plano de Deus ou da vontade divina.” (P. 70, P. 1).
            “A Antiguidade – tanto oriental como ocidental – concebia o tempo cósmico como ciclo de retorno perene e o tempo dos entes como reta finita, marcada pelo nascimento e pela morte. (...) O tempo da historia antiga é épico, narrando os grandes feitos de homens e cidades cuja duração é finita e cuja preservação é a comemoração.” (P. 70, P. 2).
            “Diferentemente do tempo cósmico (natural) e épico (histórico), o tempo bíblico, como mostra Auerbach, é dramático, pois a história narrada é não somente sagrada, mas também o drama do afastamento do homem de Deus e da promessa de reconciliação de Deus com o homem.” (P. 70, P. 3).
            (...) “O tempo não é repetição (cósmica) nem simples escoamento (humano), mas passagem rumo a um fim que lhe sentido e orienta o seu sentido, sua direção.” (P. 71, P. 1).
            (...) “Seja como história messiânica, seja como história milenarista, a história se completará e o tempo findará.” (P. 71, P. 3).
            (...) “a cristologia nasce em dois movimentos sucessivos: no primeiro movimento, o Artigo Testamento é interpretado como profecia do Advento do Messias; No movimento seguinte (quando, historicamente, o mundo não acabou depois da Ressurreição do Cristo e o Juízo Final tarda a acontecer enquanto o mal se palha por toda parte), o Novo Testamento passou a ser interpretado como profecia do Segundo Advento, a Segunda Vinda do Messias no fim dos tempos, com a qual, finalmente, a história estará completamente consumada.” (P. 72, P. 2).
            (...) “o término do império Romano levou a condenação da esperança milenarista, pois esta dava pouca importância à instituição eclesiástica e não tinha motivo para submeter-se ao poder da Igreja, fugaz e efêmero.” (P. 73, P. 1).
            “Se o Brasil é “terra abençoada por Deus”, se é paraíso reencontrado, então somos berço do mundo, pois somos o mundo originário e original. E se o país está “deitado em berço esplendido” é porque fazemos parte do plano providencial de Deus.” (P. 75, P. 2).
            “Mas também entramos na história pela porta milenarista, que pouco a pouco, tenderá a ser a via percorrida pelas classes populares. O certão virará praia, e a praia virará certão [...]” (P. 79, P. 2).
            “Mas, tanto a via providencial como na via profética, somos agentes da vontade de Deus e nosso tempo é o da sagração do tempo. A história é parte da teologia.” (P. 79, P. 2).

            A sagração do governante

            “Um só rebanho, um só pastor. Uma só cabeça, um único cetro e um único diadema. A imagem teológica do poder político se afirma porque encontra no tempo profano sua manifestação: a monarquia absoluta por direito divino dos reis.” (P. 79, P. 3).
            “Em suas origens, a monarquia absoluta se instala para resolver as crises do mundo feudal e assegurar à nobreza a manutenção de seus privilégios quando esta se vê ameaçada pelo desaparecimento da servidão. (...) e pelas revoltas camponesas que se alastram pela Europa.” (P. 80, P.2).
            (...) “A monarquia absoluta surge, portanto, determinada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato e sobredeterminada pela ascensão da burguesia ou pela pressão do capital mercantil.” (P. 80, P. 4).
            “A unificação territorial, feita sob a tese romana de que o fundo público (a terra) é dominium e patrimonium do rei, e a autoridade régia como forte da lei e não obrigara pela lei, determinou a fisionomia do Estado absolutista, obra de burocratas, funcionários do Estado, versados no direito romano: os letrados, de Portugal e Espanha, os maîtres de requêtes, da França, os doctores, da Alemanha.” (P. 81, P. 1).
            “A moderna teoria do direito divino dos reis está fundamentada numa nova teoria da soberania como pode uno, único e indivisível. Todavia, só alcançarmos sua força persuasiva se a entrelaçarmos com a teoria do direito natural objetivo como ordem jurídica divina natural, que oferece o fundamento para uma concepção teocrática do poder político, isto é, uma concepção que afirma que o poder político vem diretamente de Deus.” (P. 82, P. 2).
(...) “O rei recebe o corpo político ou o corpo místico no momento da coroação, quando recebe as insígnias do poder: o certo (que simboliza o poder para dirigir), a coroa (que simboliza o poder para decidir), o manto (que simboliza a proteção divina e aquela que o rei dará aos súditos), a espada (que simboliza o poder de guerra e paz) e o anel (que simboliza o casamento do rei com o patrimônio, isto é, a terra).” (P. 83, P.1).
(...) “Os desclassificados do ouro, os homens livres pobres, mulatos e mestiços, não conseguirão se mover porque não tinham lugar, sua utilidade estando em servir de figuração da vadiagem com que se podia deixar invisível a base da hierarquia social, dando-lhe apenas visibilidade negativa.” (P. 84, P. 3).
(...) “efeitos deixados pela sagração do poder.” (P. 85, P. 3).
“Um primeiro efeito pode ser visto diretamente e a olho nu: o símbolo escolhido pela República refém-proclamada para representá-la é Tiradentes.” (P. 85, P. 4)
“Um outro efeito pode ser observado se reunirmos a sagração da história e a sagração do governante. Ao articulá-las, notaremos que o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado: do lado dos dominantes, ele opera na produção da visão de seu direito natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito natural por meio das redes de favor e clientela, do ufanismo nacionalista, da ideologia desenvolvimentista e da ideologia da modernização, que são expressões laicizadas da teologia da história providencialista e do governo pela graça de Deus;” (P. 86, P. 1).
“A sagração do governante tem ainda como efeito a maneira como se realiza a prática da representação política no Brasil. (...) Essa concepção na política brasileira, na qual os representantes, embora eleitos, não são percebidos pelos representados como seus representantes e sim como representantes do Estado em face do povo, o qual se dirige aos representantes para solicitar favores ou obter privilégio. (...) que se manifesta na força do populismo na política brasileira.” (P. 86, P. 2).

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